O Tribunal Permanente dos Povos a caminho da sessão sobre o Cerrado

Do ponto de vista institucional, o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) é definido como um tribunal internacional de opinião, com sede em Roma. Foi instituído em Bolonha, no dia 24 de junho de 1979, como um instrumento de apoio e promoção das lutas dos povos em busca e defesa do direito à autodeterminação, de acordo com os princípios afirmados na Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Argel, 4 de julho de 1976). Tal declaração foi formulada como uma conclusão e visão de futuro do Tribunal Russell II sobre as ditaduras da América Latina (1974-1976). De acordo com os termos de seu estatuto formal, o TPP assim define seus objetivos:

  • Ser uma tribuna de visibilidade, do direito à palavra, de afirmação dos direitos dos povos expostos a violações graves e sistemáticas por parte dos atores públicos e privados, nacionais e internacionais, e sem possibilidade de recurso e acesso aos organismos competentes da comunidade internacional organizada.
  • Constituir uma ferramenta para explicitar e determinar a existência, a gravidade, a responsabilidade e a impunidade das violações cometidas, bem como as medidas de justiça e reparação cabidas.
  • Ser testemunha e promotor da pesquisa e investigação voltada a preencher as lacunas institucionais e doutrinais do direito internacional atual.

Cumprindo as solicitações de intervenção recebidas ao longo de mais de 40 anos de atividade, o TPP realizou 48 sessões públicas que desenham um mapa concreto das situações mais críticas de repressão massiva (até mesmo o genocídio) dos direitos humanos e dos povos, destacando as responsabilidades dos atores estatais e privados (principalmente as corporações transnacionais), bem como as lutas de resistência e as perspectivas de um “outro” mundo, onde as vítimas se afirmam como sujeitos e donas de seus direitos a uma vida digna.

Não é possível propor um resumo, mesmo que parcial, de uma trajetória tão longa e que proporcione uma leitura da história global sob o ponto de vista dos povos. Talvez o significado mais pertinente do papel do TPP – situado, em sua origem, no cenário da transformação da ordem internacional e, em seu desenvolvimento, no que as situações de uma nova ordem colonial reproduzem – encontra-se nas palavras de dois dos representantes mais conhecidos da literatura latino-americana, que foram membros do TPP desde sua fundação, Julio Cortazar e Eduardo Galeano. O primeiro, na ocasião do evento de lançamento do TPP em 1979, afirmou em seu discurso: “Inventamos pontes, inventamos caminhos até aqueles que de longe escutarão nossa voz, e algum dia vão transformá-la nesse grande clamor que derrubará as barreiras que hoje nos separam da justiça, soberania e dignidade”. O segundo, na ocasião da Sessão sobre a Conquista da América Latina e o Direito Internacional, celebrada nas cidades de Pádua e Veneza entre 5 e 8 de outubro de 1992, em texto intitulado “500 anos de solidão”, escreveu: “há cinco séculos nasceu esse sistema que globalizou a desigualdade nas trocas, e fixou um preço em todo o planeta e nos seres humanos. Para viver, para sobreviver, precisa da desigualdade como os pulmões precisam do ar […]. O direito internacional é filho do direito da conquista, o qual o presidente do TPP chama de “seu pecado original” […]. Nos acostumaram a esquecer-nos do que merece memória, a aceitar o presente como destino: e, contudo, estamos reunidos na certeza de que o mundo pode e deve ser casa de todos, e que há outro direito possível, o qual não declara como legítima a injustiça […]”. 

O histórico muito conflituoso do Brasil nas últimas décadas após o fim da ditadura militar ocupou uma parte importante da atenção do TPP. A Sessão de 1989-1991, dedicada ao tema da Impunidade nos crimes de lesa-humanidade na América Latina, pela primeira vez, pôs em evidência a permanência de uma situação de impunidade que inclui não só a falta de punição aos responsáveis, mas também, e de maneira mais profunda, a negação do direito à memória coletiva como a condição imprescindível para evitar novas formas de ditaduras que visam o atraso e o esvaziamento dos resultados dos tempos de democracia. Os últimos anos do país revelam a atualidade de tal consideração, formulada há três décadas. 

Com a Sessão sobre a Amazônia e o genocídio das populações indígenas, em 1992, o TPP destacou a trágica distância entre a realidade e as perspectivas indicadas pela constituição, que se comprometia com uma verdadeira e necessária “revolução” no manejo democrático dos territórios e garantias de autonomia de vida de seus povos. Nos anos seguintes, em 1991, a Sessão sobre a Situação das crianças e adolescentes na sociedade e nas prisões pôs em evidência como e quanto uma democracia legalmente reconhecida com a formalidade de processos eleitorais pode ficar distante da legitimidade de uma ordem social capaz de lidar com as situações econômicas, sociais e institucionais de marginalidade das gerações que mais deveriam ser o centro dos investimentos e de políticas que visassem um futuro de direito acessível e não somente proclamado.

A evolução do Brasil rumo a um papel de protagonista no mundo global no novo século pôs o país ainda mais diretamente no centro das novas políticas de repressão dos direitos de autodeterminação dos povos e de neocolonialismo que se desenvolveram nas primeiras décadas do segundo milênio. Várias sessões do TPP dirigiram sua atenção ao Brasil (entre outros Estados):

– por um lado, como objeto de intervenção das empresas transnacionais nos setores agroalimentar e das indústrias extrativas, que viram a aliança estreita, ou até mesmo a dependência, das políticas estatais (nacionais e internacionais, como a União Europeia e o Canadá) em relação aos interesses privados, com consequências dramáticas sobre a economia do país e os direitos trabalhistas;

– por outro lado, como ator de repressão sobre os próprios direitos humanos e dos povos nas regiões do mundo, como o caso dos Southern Africa Developing Countries (SADC), por meio dos mesmos mecanismos de aliança entre transnacionais, incluindo as brasileiras (como a Vale), e apoio político e institucional dos países envolvidos. 

Outras duas sessões do TPP oferecem argumentos e dados particularmente importantes para um desenvolvimento eficaz da sessão que está sendo planejada sobre o Cerrado, pelo fato de terem se debruçado profundamente sobre dois países que se defrontaram com (e continuam expostos a) situações de repressão maciça dos direitos dos povos, a Colômbia e o México. De maneira semelhante à situação mais recente do Brasil, os países mencionados são expressões de modelos de desenvolvimento nos quais as alianças estruturais entre governo e poderes econômicos privados (nacionais e transnacionais, legais e criminais) são mantidas junto a políticas de “segurança”: os cidadãos e, sobretudo, as parcelas importantes representadas pelos povos indígenas, são transformados em verdadeiros “inimigos internos”. Nesse cenário, os direitos constitucionais são suspensos diante das formas difusas e generalizadas de violência cometidas por parte das Forças Armadas e da polícia em nome de prioridades econômicas e/ou de segurança, incluindo deslocamentos forçados, assassinatos seletivos e execuções extrajudiciais, controle da informação, repressão de trabalhadores e sindicatos. E um poder judiciário que não é independente da política dominante assegura a impunidade a crimes tão graves, dada a sua natureza sistêmica, que deveriam ser classificados como crimes contra a humanidade (e até mesmo o genocídio contínuo recém denunciado e julgado no caso da Colômbia). O que importa, nesse sentido, é destacar o registro histórico de quantas e quais formas de resistência foram desenvolvidas: a tomada da palavra restituída pelo TPP aos testemunhos e representantes e às comunidades afetadas garantiu às “vítimas” a sua visibilidade, identidade de sujeitos de direitos invioláveis, e sua consciência coletiva de poderem ser atores e donos de suas vidas.

As lutas, o destino, a longa história de resistência e resiliência dos povos do Cerrado são parte de um processo de busca pela vida e dignidade, autodeterminação, direitos pessoais e comunitários que interessa a tantas realidades em um mundo que almeja reestabelecer condições coloniais e escravagistas.

O TPP não é um tribunal cujo trabalho se limita a documentar e julgar os responsáveis. Não tem, nesse sentido, nem o poder de polícia, nem o poder jurídico para traduzir seus juízos em sentenças aplicáveis. Trata-se de mais uma ferramenta para as lutas e para a consciencia das comunidades. Um direito novo, produzido a partir de dentro das vidas concretas destas comunidades e com raízes em seus territórios, memórias e em seus sonhos de dignidade pode e deve ser produto de um caminho que não pareça isolado e sem futuro. O TPP é uma tribuna e plataforma de colaboração, intercâmbio, análise, formação coletiva desse caminho: no e do Brasil, e com a consciência de sermos testemunhas e atores de uma mudança que coincida com a esperança dos tantos povos. Num mundo global, o objetivo principal dos governantes é impor a fragmentação e o isolamento das lutas para convencer de que não existem alternativas.  A história do TPP é uma de apoio e memória contra o cansaço e o risco de se desistir de olhar para frente. É pouco, mas sua riqueza e respaldo são as vidas e as lutas das inúmeras pessoas e comunidades que somaram a força e dignidade de seus testemunhos para que os povos do Cerrado se sintam acompanhados.

Gianni Tognoni

Secretário Geral do Tribunal Permanente dos Povos