Além das denúncias dos crimes cometidos contra o Cerrado e seus povos, parte constitutiva do veredito proferido pelo júri do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado são RECOMENDAÇÕES, tidas como anúncios propositivos de medidas que estão ao alcance de serem implementadas e que favorecem sobremaneira a promoção da justiça socioambiental, dos direitos à terra e ao território, da soberania e segurança alimentar e nutricional, da proteção das águas e da sociobiodiversidade, da autodeterminação dos povos e da defesa do Cerrado.
Essas recomendações foram construídas no âmbito da Campanha e referendadas em oficinas amplas e participativas, que contaram com as organizações, representantes e articuladores/as dos casos concretos denunciados ao Tribunal. Algumas delas sinalizam ao sistema de justiça, em especial, mas também ao poder público, em geral, algumas obrigações concretas para fazer valer direitos já instituídos no marco legal de nosso país, mas que seguem sendo violados, diminuídos à condição de letra morta em códigos que existem no papel e não no cotidiano da luta por justiça dos povos e comunidades do Cerrado.
Para romper a arquitetura da impunidade, parte das recomendações se vale então de um valioso exercício de memória e de sistematização daqueles direitos que já foram conquistados e reconhecidos, mas que precisam ser concretizados. A identificação, demarcação e titulação coletiva dos territórios indígenas, quilombolas, de povos e comunidades tradicionais do Cerrado, bem como a implementação da política de reforma agrária, garantias expressas na Constituição Federal e em convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, são as primeiras entre muitas das recomendações que têm em comum o legítimo coro pela exigibilidade de direitos.
Algumas outras recomendações demandam, por outro lado, não a aplicação, mas que sejam revistas e revogadas leis e institutos normativos que contradizem o interesse público pela proteção do Cerrado, a maioria das quais se impuseram no contexto de franco desmonte da legislação socioambiental brasileira e das políticas públicas.
No rol das recomendações que enfrentam o retrocesso civilizatório dos últimos períodos, buscamos que sejam revogadas um amplo rol de leis, decretos, instruções normativas e portarias que prestam um desserviço aos povos do Cerrado ao favorecerem a grilagem de territórios tradicionais, a privatização de terras públicas devolutas, a expansão do garimpo, da mineração e do agronegócio sobre os territórios dos Cerrado, entre outros vetores de devastação que vêm sendo legalizados.
Um terceiro tipo de recomendações expressa lutas que estão atualmente em curso para impedir que o retrocesso siga avançando e o fundo do poço se aprofundando. São recomendações para que sejam retirados de pauta Projetos de Lei que ferem os direitos territoriais e socioambientais de povos indígenas, comunidades quilombolas, tradicionais e camponesas.
Por fim, algumas das recomendações – são 91 ao total – guardam um sentido de potência especial. São aquelas que ativam o sentido criativo da luta por direitos, e inovam em formulações e categorias políticas que emergem da experiência concreta e dos saberes dos povos e comunidades tradicionais no chão de cinco séculos de resistência contra a pilhagem e devastação da natureza e de racismo contra aqueles e aquelas que com ela existem.
Em tempos de crise, as recomendações adiante apresentadas são como vaga-lumes na escuridão arriscando pistas não só de defesa da democracia, mas de sua radicalização. Algumas delas se direcionam a reivindicar expressamente espaços de participação que foram roubados da sociedade civil, mas o somatório delas vai além, na tecitura de um projeto de sociedade que reconheça o valor (não-monetizável) da sociobiodiversidade do Cerrado, e que garanta, aos povos e comunidades que historicamente o defendem, o direito à sobrevivência e à autonomia.
A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado foi lançada em 2016, em um contexto de profundas rupturas na institucionalidade democrática no Brasil. De lá para cá, os conflitos fundiários e ambientais no Cerrado só se agravaram, em especial pela expansão de medidas de austeridade neoliberal e pela ascensão do fascismo, racismo e anti-ambientalismo nos últimos anos.
Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado
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