“Frear o fogo, as motosseras e o genocídio”: saiba como foi o lançamento do tribunal dos povos do cerrado

Às vésperas de comemorarmos o Dia Nacional do Cerrado, em 11 de setembro, a Sessão Especial de lançamento do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) colocou em evidência o crime de ecocídio em curso contra o Cerrado e a ameaça de genocídio cultural dos povos do Cerrado ao tornar pública sua peça de acusação.

“O que está acontecendo no Brasil, especificamente no Cerrado, nos coloca o desafio internacional de reconhecer o ecocídio”, afirmou o secretário geral do TPP, Gianni Tognoni, durante a abertura do evento que aconteceu durante a manhã do dia 10 de setembro, em live transmitida pelo YouTube da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. 

Gianni Tognoni destacou que, no primeiro momento, o TPP efetivamente se coloca como uma tribuna de visibilidade e de tomada da palavra pelas populações que não recebem atenção da comunidade brasileira e internacional. Para ele, o primeiro ato do TPP é reconhecer as vítimas de uma repressão a longo prazo, no caso, povos e comunidades tradicionais do Cerrado, como sujeitos de sua própria história. Ele pontuou a urgência de debater a necessidade do direito internacional e brasileiro assumirem os direitos dos povos do Cerrado e voltarem a ser uma  categoria universal de justiça e democracia.

A jornalista e membra da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Maryellen Crisóstomo, conduziu o primeiro momento do lançamento e prestou solidariedade aos povos indígenas que lutam contra o Marco Temporal. “Pretendemos levar ao conhecimento da sociedade brasileira e da comunidade internacional as violações dos direitos humanos e dos povos e comunidades tradicionais que habitam o Cerrado, que têm sofrido graves impactos ao longo do tempo para a sobrevivência dos ecossistemas e da biodiversidade”, disse Maryellen ao explicar o objetivo do TPP.

Ameaça ao Cerrado e à democracia

Valéria Santos, da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, articulação de 50 entidades e movimentos que apresentou ao TPP a denúncia do crime de ecocídio, alertou que se nada for feito para frear a devastação desta savana, o Brasil estará diante de uma ameaça de aprofundamento irreversível do ecocídio, com a extinção do bioma nos próximos anos. Junto a essa ameaça, segundo Valéria, está também a ameaça do genocídio cultural dos povos e comunidades tradicionais que dependem do Cerrado para existir. “Há quase meio século o Cerrado transformou-se num campo de batalha. Estamos perdendo nossas farmácias vivas, comunidades inteiras estão cerceadas dos seus direitos territoriais, sendo cercadas, expulsas e até assassinadas, o que se intensificou nos últimos três anos com o governo Bolsonaro, apoiado pelo agronegócio”, enfatizou.

Também presente na abertura, a deputada federal Luiza Erundina relembrou Lelio Basso, fundador do TPP, e de quando a luta pela anistia se desencadeou no Brasil, ao mencionar que a defesa da democracia é antiga. “O TPP é um espaço em que as injustiças que se fazem contra nossos povos têm a oportunidade de denúncia”, disse Erundina, destacando que o TPP hoje se dá diante de uma profunda crise econômica, social e política com riscos reais contra o estado democrático de direito. “Nossa luta pela democracia é permanente. A democracia é o direito à plenitude da cidadania”, finalizou a deputada.

Fundamentos da denúncia

Na segunda parte da live de lançamento do TPP, o geógrafo e professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, a pesquisadora e membro da Campanha em Defesa do Cerrado Diana Aguiar, e a quebradeira de coco babaçu e coordenadora da Rede Cerrado Maria do Socorro Teixeira Lima, apresentaram fatos e dados que fundamentam a denúncia de  crime de Ecocídio em curso contra o Cerrado e a ameaça de genocídio cultural dos povos que há milhares de anos se relacionam com esta savana.  

O crime de ecocídio praticado contra o Cerrado é um crime de sistema, agravado nos últimos anos devido ao fascismo, racismo e antiambientalismo do governo Bolsonaro, afirmou Diana Aguiar. “Não se trata de buscar o ecocídio em casos específicos – embora estes sejam sua expressão mais concreta –, mas de compreender, a partir dos casos representativos e das análises para o conjunto do Cerrado, a sistematicidade geográfica (em todo o Cerrado) e temporal (no último meio século) do crime de ecocídio do Cerrado”, explicou a pesquisadora. 

Todos foram unânimes em afirmar que a ameaça contra o Cerrado se fortalece com a expansão do agronegócio. “Cerca de 95% da região é plana, os grandes empreendimentos agrícolas tiram proveito disso e focam as plantações nas planícies do Cerrado. Com tecnologias estrangeiras voltadas para a exploração da terra e uso desenfreado de agrotóxicos, o solo fica compactado, o que seca os rios, agravando a questão hídrica para o país”, explicou o geógrafo.

O professor lembrou que o governo brasileiro contribuiu para a origem dessas grandes monoculturas ao aceitar investimentos estrangeiros em pesquisa para desenvolver a monocultura da soja. Em 1976, o país produzia 12 milhões de toneladas. No ano passado, a produção bateu 120 milhões de toneladas. Desse total, 75% é produzido no Cerrado  

As consequências são sentidas também na saúde da população. De acordo com Carlos Walter, “uma das hipóteses mais aceitas entre os cientistas que debatem o início da pandemia está no processo de devastação dos biomas, de áreas tradicionais abrindo espaço para as zoonoses, que encontram nos seres humanos condições para sua existência”. 

A experiência dos povos do Cerrado 

A quebradeira de coco babaçu e coordenadora da Rede Cerrado Maria do Socorro Teixeira trouxe a sabedoria dos povos que se relacionam de maneira harmoniosa com o bioma. “Não nós não defendemos, nós protegemos as águas e as florestas. Eles chamam de progresso o que fazem. Pra mim, progresso sustentável é meu pé de pequi porque todo ano dá pequi. Isso que eles chamam de progresso é devastação”, afirmou. 

Socorro falou sobre a atuação do governo federal que defende o agronegócio, fomentando a fome, a corrupção e a morte. Ela ainda denunciou que em sua comunidade, no Tocantins, estão perdendo o capim dourado por causa da grilagem e fez um alerta sobre o programa Adote um Parque, do governo federal, que entrega à iniciativa privada a administração de Unidades de Conservação, muitas das quais estão sobrepostas a territórios de povos tradicionais. “O programa vai fazer com que a gente perca essa riqueza. Com o Adote um Parque, as terras dos indígenas no Tocantins já estão sendo griladas. Vamos perder o babaçu também porque não vai resistir ao agrotóxico e às queimadas. O Cerrado é vida. O cerrado não é uma coisa que você usa e joga fora. Nós precisamos do cerrado em pé. Da onde eu vou tirar o babaçu, o pequi, os frutos do Cerrado se não tiver Cerrado? Sem o Cerrado, a Amazônia não vai existir. É caixão e vela preta”, finalizou. 

História e identidade dos povos do cerrado 

O cerrado é ocupado há milhares de anos, afirmou o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves em sua exposição durante a live. Primeiro pelos indígenas, e depois pelos quilombolas. Ambos os povos aprenderam com o bioma a vivenciar o dia a dia e a conhecer sua diversidade. Ali construíram a sua história. “Os povos indígenas são a grande matriz de conhecimento do Cerrado, como agora querem votar o Marco Temporal?”, questionou o professor. 

Os povos e comunidades do Cerrado construíram suas histórias a partir dos elementos desta savana. A morte do cerrado é a morte desses povos. O que será da quebradeira de coco babaçu sem a ‘mãe palmeira?’. Por isso, a acusação do TPP compreende que conservar a diversidade cultural e biológica do Cerrado é um bem comum para toda a humanidade e o planeta. 

“Frear o fogo, as motosserras e o genocídio”

Em momento histórico, o encerramento do lançamento do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado foi marcado por falas contundentes e pelo aceite da peça de acusação por todos os membros do júri. 

Simona Fraudatario, Secretária Geral do TPP, abriu os trabalhos destacando a emoção de participar desse momento que começou a ser construído há dois anos. Em seguida apresentou a composição do júri e o histórico dos integrantes, destacando o critério de independência das pessoas designadas para a sua formação. Presente nas falas de todos os jurados destacou-se especialmente a consistência, a riqueza e a contextualização da peça de acusação. 

Philippe Texier, presidente do TPP, enfatizou que embora o Cerrado seja tratado como um grande espaço vazio, possui uma história de longa duração e abriga uma savana com uma biodiversidade particular juntamente com seus povos de saberes ancestrais. A ideia de uma terra vazia produz uma violência epistêmica sistemática que foi apontada também por Deborah Duprat, ex-vice-Procuradora Geral da República do Brasil. 

A degradação ambiental sistêmica ligada a crimes econômicos também esteve presente nas falas do Júri. Teresa Almeida Cravo, da Universidade de Coimbra, apontou que “a acusação do Estado brasileiro é fundamental, mas é preciso também destacar os outros atores que contribuem com esse cenário, para que todos assumam suas responsabilidades”.  

Antoni Pigrau, da Universidade de Tarragona, fez sua contribuição no sentido de elucidar a incidência do tribunal e sua relevância para a proteção do território. Destacou, portanto, os três aspectos políticos do tribunal, que se somarão à luta das comunidades. São eles: promover o empoderamento das organizações e das comunidades; ser porta-voz das denúncias para aumentar a sua visibilidade no contexto global; pressionar politicamente o comportamento dos responsáveis. 

Eliane Brum, jornalista e escritora, Dom Valdeci Mendes, bispo do Maranhão, e Sônia Guajajara, liderança indígena, trouxeram falas que salientaram a importância da solidariedade e irmandade entre os povos, uma vez que a degradação de um bioma como Cerrado repercute em cadeia. Nas palavras de Eliane Brum “o ecocídio é também um genocídio. O que estamos julgando aqui é essa possibilidade de futuro, o que estamos julgando aqui é o risco da nossa própria extinção”. 

De maneira contundente, Sônia Guajajara apresentou o horizonte que se pretende com o Tribunal dos Povos do Cerrado: “frear o fogo, as motosserras e o genocídio: essa luta é nossa”.

Após a instalação, ontem (10/09), do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado, os trabalhos serguirão até 2022. Serão realizadas audiências temáticas para análise dos casos, e a sentença do júri será proferida em novembro do ano que vem. A programação completa pode ser conferida no site oficial do Tribunal.


Colaboraram AATR (Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais), CPT (Comissão Pastoral da Terra), FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e Raízes do Cajueiro.

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